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Caso Kiss: Primeiro réu interrogado, Kiko Spohr chora: ‘Não aguento mais’

9 de dezembro de 2021

“Perdi amigos, funcionários. Por que eu ia fazer isso? Querem me prender, me prendam. Eu não aguento mais!”. Esse foi um dos trechos mais marcantes do depoimento de Elissandro Callegaro Spohr, o Kiko, um dos sócios da boate Kiss, durante declarações, ontem, no júri sobre o incêndio da casa noturna em Santa maria, em 2013, que matou 242 pessoas e deixou mais de 600 feridas. O júri acontece em Porto Alegre.

Chorando muito, Spohr, que estava sentado de costas para a plateia e respondia aos questionamentos do Juiz Orlando Faccini Neto, se voltou para as famílias das vítimas  do incêndio na Boate Kiss , que acompanhavam o seu interrogatório. Ele foi o primeiro dos 4 réus a ser interpelado, ainda na tarde de hoje (8/12). Amanhã, será a vez de Luciano Bonilha Leão, Mauro Londero Hoffmann e Marcelo de Jesus dos Santos.

Enquanto o réu gritava, lamentando o acontecido e tentando apresentar seus argumentos, os familiares ficaram de pé e deram as mãos em silêncio. Após, fizeram um círculo e se abraçaram. Foi neste momento que o Juiz Faccini, que preside o júri, fez um intervalo de 40 minutos.

Em seu depoimento, Elissandro disse que não autorizou a Banda Gurizada Fandangueira a utilizar artefatos pirotécnicos (que, em contato com a espuma aplicada no teto, provocou o incêndio) durante a apresentação na madrugada de 27/01/13. Afirmou também que não viu o princípio do fogo. Sobre a quantidade de pessoas que estavam na boate aquela noite, ressaltou que havia controle de público. E que, quando chegava em 800 pessoas dentro do estabelecimento, só entravam conforme outros saíam. “Isso eu te digo com certeza absoluta”.

Sobre os extintores de incêndio, confirmou que eles estavam recarregados. “Não funcionou. Por que não funcionou? Só Deus sabe”.

As barras de ferro, que teriam dificultado a fuga das vítimas, foram colocadas para organizar a saída dos clientes.

Projeto acústico

Kiko disse que encaminhou o pedido de renovação do alvará e que fez melhorias estruturais no estabelecimento. “Fui tentando melhorar a casa”. Havia o problema com uma vizinha, que reclamava do som alto, que reverberava no apartamento dela. “Tentei de tudo para resolver. Ofereci pagar o aluguel de um apartamento para ela e eu usaria aquele de estoque, só para não haver mais este incômodo”. Tiago Mutti, irmão da sócia da boate antes de Kiko, teria indicado o engenheiro Samir para resolver essa questão. “Vamos fazer uma parede, no lado da vizinha, e vamos colocar espuma. Nem questionei em momento nenhum”, relatou Kiko quanto à orientação do profissional. Mas o barulho persistiu.

O empresário foi chamado a comparecer no Ministério Público e prometeu ao Promotor de Justiça que resolveria. “Samir me disse que estava cheio de serviço, mas indicou outro profissional, o Engenheiro Pedroso”. O réu esclareceu que não foi Pedroso quem indicou a colocação de espuma. “Ele disse que não precisava porque não resolveria o problema”. A opção seria revestir a parede com tijolos e também mudar o palco de lugar.

Pedroso não executou a obra. Foi um tio de Elissandro, já falecido. O custo total foi de R$ 230 mil (R$ 60 mil só de mão-de-obra). Mauro Hoffmann já era sócio da boate. Kiko acabou fazendo uma série de obras na casa da vizinha que reclamava e resolveu o impasse. Mas, segundo ele, com a troca de lugar do palco, passou a ter problemas com outra vizinha.

Segundo ele, acabou perdendo contato com Pedroso e voltou a falar do assunto com Samir, que teria respondido: “Kiko, já te falei, tu vai ter que fazer um tratamento acústico. Tem que colocar espuma”. As espumas que haviam sido retiradas, por orientação de Pedroso, foram aplicadas no palco, mas Kiko não gostou do resultado e mandou tirar. Posteriormente, adquiriu espuma nova e fez a aplicação.

Elissandro disse que pediu à Arquiteta Nivia Braido indicação para colocação de um papel de parede na casa noturna. Ela fez algumas sugestões e apresentou um projeto arquitetônico, mas Elissandro não gostou.

Incêndio
Elissandro chegava cedo na boate, por volta das 15h, onde permanecia até umas 21h30min. Ele participava das passagens de som. Kiko e a esposa, Nathália, foram jantar e retornaram para a Kiss, por volta da 1h40min, quando a festa “Agromerados” já estava acontecendo. A primeira banda a tocar naquela noite foi Pimenta e seus Comparsas. Depois, o DJ tocou música mecânica e, em seguida, subiu ao palco da Kiss a Gurizada Fandangueira.

Enquanto isso, Kiko circulava pela casa noturna. Ele disse que viu a primeira atração musical. Houve um princípio de tumulto com um cliente embriagado, que convenceu ir para a rua. “Conversei um pouco com ele eu levei até a rua. Quando eu virei, o Fabiano veio correndo e disse: ‘deu alguma coisa no palco’”. Elissandro retornou à casa, mas não viu o início do fogo. “Só vi a correria das pessoas. Abri as portas e gritava: ‘sai, sai, sai’”.

Disse que tentaram ligar para os bombeiros. “Achei que iam resolver, mas isso não aconteceu. A situação só piorou”. Kiko queria voltar à Kiss para encontrar a esposa, mas foi impedido pelos funcionários, até que a achou. Começaram a quebrar a parede da fachada. “Alguém desligou as luzes e a fumaça deu uma acalmada”. O empresário disse que foi para a Delegacia, onde teria sido mandado embora para casa. “Não fui lá para me defender. Fui para ver o que eu fazia. Já sentia o clima pesado”, afirmou. “Eu não sabia o que fazer. Eu não sabia para onde eu ia. Não tinha explicação”.

Pirotecnia
A Projeto Pantana já tocou com a banda Gurizada Fandangueira no mesmo evento. Kiko disse que nunca viu os músicos utilizarem recursos pirotécnicos. “Cheguei a ‘vender’ a banda. Quem sabe, eles faziam, mas eu não vi”. Afirmou que tinha relação de amizade com Danilo, o gaiteiro que faleceu. Os músicos tocavam pilchados e Kiko chegou a sugerir a troca de estilo da banda para se adequar ao perfil das boates.

Questionado pelo Juiz se ele havia avisado aos músicos sobre a presença de espuma no palco, após a reforma, Kiko disse que não informou. “Não cheguei a ter essa conversa com eles. Eu acredito que eles realmente acreditavam que esse tareco não pegava fogo”.

Familiares
Kiko afirmou que, mesmo passados quase 9 anos, não teve coragem de fazer expressar condolências aos sobreviventes e familiares de vítimas fatais. “Sempre me senti, de uma forma talvez envergonhado, sem saber o que dizer”. Afirmou que chegou a sofrer ameaça de morte.

Música e empreendedorismo
Elissandro iniciou o seu depoimento falando ao Juiz Orlando Faccini Neto sobre a sua vida pessoal. Natural de Santa Rosa, ele contou que sempre gostou de música desde criança, quando começou a tocar violão. Kiko, como é conhecido, conheceu o pai já por volta dos 12 anos e também falou um pouco sobre a relação. Foi através de um amigo de Santa Maria, que tinha uma banda chamada Pantana, que surgiu o nome da banda dele, a Projeto Pantana.

A banda estava indo bem, Kiko também promovia outros grupos e vendia pacotes de shows. “O meu negócio com a noite era a música”. A boate Absinto Hall, de Mauro Londero Hoffmann, já existia. Foi através dessa ligação com a música que ele começou a conhecer o ramo do entretenimento santamariense.

Em 2009, ele já conhecia o engenheiro Tiago Mutti, irmão de uma das sócias da Boate Kiss, e passou a atuar na casa noturna recém-inaugurada. O estabelecimento não ia bem. E, quando Tiago quis vender para ele a parte da irmã, Kiko ofereceu um carro e uma quantia em dinheiro (R$ 15 mil) e assumiu os negócios. Ele considera que sempre teve espírito empreendedor. Para alavancar o investimento, teve a ideia de montar a “Quinta Absoluta”, proposta que deu certo. “A Kiss começou a ter um sucesso”. A irmã e o cunhado trabalhavam com ele.

De acordo com Elissandro, Mauro Hoffmann ingressou na sociedade já na reta final, em torno de 7 meses antes do incêndio. Ele apenas respondeu aos questionamentos feitos pelo magistrado. Nenhuma das bancadas, nem mesmo a sua defesa, fez perguntas. O julgamento retorna hoje (9/12), às 9 horas.

Promotor

O Promotor de Justiça Ricardo Lozza encerrou, ontem, a fase de depoimentos em plenário, sendo a 28ª pessoa a ser ouvida no plenário do júri do caso Kiss. O Membro do Ministério Público (MP), que atua em Santa Maria, foi o responsável pelo Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) que estabelecia as adequações a serem feitas na Boate Kiss para resolver o problema de vazamento acústico. Ele negou que a colocação da espuma (que, em contato com a centelha do artefato pirotécnico acionado durante show) tenha sido permitida pelo documento. “(O TAC) Jamais sugeriu, recomendou, indicou qualquer uso de espuma”, afirmou Lozza. “O Ministério Público não tem qualquer ligação com isso”.

Lozza também disse que o MP não tinha competência para fechar a boate nem realizar a fiscalização do estabelecimento. “O MP agiu dentro da sua atribuição (reparação civil)”. Segundo ele, quem tinha esse dever era a Prefeitura Municipal de Santa Maria.

Em razão de questionamentos acerca da atuação do MP no caso, o Promotor de Justiça recebeu críticas. Lozza disse que sempre respeitou a dor dos pais das vítimas fatais. Mas lembra que o clima era muito difícil. “Todas as pessoas em Santa Maria, por algum momento, só respiravam Kiss”, considerou. “Para quem é da cidade, é difícil aceitar a tragédia”, ressaltou. “Enquanto Promotor de Justiça, fiz tudo o que tinha que fazer. Nunca tive calvário. Eu sei que o que fiz estava correto. Como cidadão santamariense, pai de família, não tem como não ter sofrido. Mas não sou vítima de nada. As vítimas estão ali”.

Depoimento

O Promotor Ricardo Lozza explicou que atuava na área ambiental, no que se refere à reparação civil de danos ambientais. Em 2009 foi instaurado inquérito civil público que apurava a poluição sonora na Boate Kiss. Na época, Elissandro Callegaro Spohr (Kiko) e Mauro Londero Hoffmann ainda não eram os sócios do estabelecimento.

Em 2011, quando Kiko já administrava a Kiss, vizinhos denunciaram ao MP a poluição sonora (o som alto é considerado um dano ambiental) vinda da casa noturna. Foram realizadas duas audiências entre o MP e o empresário, ainda no ano corrente. De acordo com o Promotor de Justiça, havia dois caminhos a ação civil pública ou o acordo (o TAC). “Esse TAC foi firmado 14 meses antes da infeliz tragédia”.

O TAC dizia, em síntese, que deveria ser efetuado o pagamento de R$ 500,00 (foi pago), feita a regularização da licença ambiental junto ao Município e a elaboração e execução de projeto técnico de isolamento acústico por profissional regularmente habilitado. “Não existe a palavra espuma. Os materiais citados no projeto foram lã de vidro, madeira e gesso acartonado”, afirmou Lozza. “A espuma só serve para conforto acústico. Isolamento se faz com massa. Por isso, não é possível relacionar a espuma com o projeto que vem do TAC”.

Feita a reforma na Kiss, o problema do vazamento de som não foi resolvido e seguiam as reclamações da vizinhança. De acordo com Lozza, ele pediu uma nova medição acústica da Patrulha Ambiental, mas isso não chegou a se concretizar porque o incêndio ocorreu antes.

Ainda de acordo com o membro do MP, não houve dúvidas quanto a veracidade de nenhum documento que chegou ao inquérito civil. Também não foi identificado nada, por parte do MP, que ensejasse a alteração do TAC como, por exemplo, uma possível ocorrência de superlotação na boate.

O Promotor de Justiça disse que nunca esteve com Mauro Londero Hoffmann e que não tinha conhecimento dele como sócio da Kiss. “Conhecia de nome. Ele tinha uma boate chamada Absinto e um restaurante, algo assim”. Também não conhecia a Banda Gurizada Fandangueira. Em 02/12/13, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça arquivou a Notícia-Crime contra o Promotor de Justiça Ricardo Lozza, formulada pela defesa de Elissandro Callegaro Spohr.

Prefeito 

“’Falta mais gente no julgamento’. Faz 8 anos que ouço isso. É uma estratégia de defesa. Essa foi a narrativa montada desde o início”. A afirmação é do ex-prefeito municipal de Santa Maria Cezar Schirmer, primeira testemunha a ser ouvida neste 8º dia de julgamento do caso Kiss. Em 27/01/13, Schirmer, hoje com 69 anos, estava iniciando o segundo mandato à frente da administração municipal. “Recebi mais de 50 ofícios, 2 mil perguntas e nós respondemos adequadamente. A Prefeitura de Santa Maria foi a mais investigada do planeta”.

O expediente criminal contra Schirmer foi arquivado pela 4ª Câmara Criminal do TJRS, em 18/07/13, a pedido do Ministério Público.

Legislação

Quando a Boate Kiss foi inaugurada, eram outros sócios, que não os réus Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Londero Hoffmann, que a administravam. Kiko passou a responder pela casa a partir de abril de 2010. De acordo com o ex-prefeito, no momento do incêndio, a Boate Kiss tinha licença para operar.

Sobre as condições legais para funcionamento do estabelecimento, Cezar Schirmer citou o Decreto Executivo nº 32/2006, vigente à época. Tal legislação estabelecia que, entre as exigências para emissão do alvará de localização (que permite o funcionamento das casas noturnas), é necessário apresentar os alvarás sanitário, de prevenção e proteção contra incêndio (APPCI), licença ambiental de operação, estudo de impacto de vizinhança, laudo técnico de isolamento acústico, etc.

O primeiro documento expedido para a Boate Kiss foi o APPCI, em 22/8/09, a pedido dos seus antigos sócios. Nesse período, houve uma série de problemas com a casa, que chegou a ser multada 7 vezes e a sofrer um embargo em 25/11/09, por não ter toda a documentação exigida para se manter funcionando. Isso só ocorreu em 14/04/10, quando foi emitido o alvará de localização. A partir de então, “a Kiss estava regular e em cumprimento com a legislação”.

A licença ambiental de operação e o alvará sanitário são renovados anualmente (com vistoria in loco). O alvará sanitário estava vencido e em processo de renovação. “Santa Maria tem 16 mil estabelecimentos e 4 mil servidores. A renovação do alvará sanitário demorou, sim, mas ele não é essencial para uma boate”.

O Ministério Público mostrou um documento emitido pelos bombeiros, em 2012, recebido pela irmã de Elissandro Spohr, que era uma das gerentes da boate, advertindo para que não houvesse a queima de material inflamável no interior do estabelecimento. O ex-prefeito disse que só teve o conhecimento desse documento após a ocorrência do incêndio.

No que se refere à prevenção e proteção contra incêndio, Cezar Schirmer disse que a responsabilidade, de acordo com regulamentação estadual, de 1997, é do Corpo de Bombeiros. “A prefeitura não se envolvia nisso. Quando a prefeitura recebia este documento (APPCI), ele tinha fé pública”. Também o uso de artefatos pirotécnicos não era de atribuição do Município, segundo ele.

Afirmou também que nunca houve nenhum movimento para a cassação do alvará de localização da boate.

Dia da tragédia

O ex-prefeito lembrou que foi acordado de madrugada com a informação do incêndio na Boate Kiss. Chegou no local por volta das 5 horas. Ele disse que conversou com autoridades de diferentes áreas para montar uma frente de atendimento a vítimas e famílias. “Passei a verificar o que a prefeitura poderia fazer. Criamos um pronto-socorro 24 horas, contratamos 42 profissionais da área de saúde mental para oferecer atendimento às pessoas”.

Decidiu-se que o velório seria no Centro Desportivo Municipal (CDM). O Exército ajudou a montar a estrutura. A então Presidente da República, Dilma Rousseff, ligou para ele, para prestar solidariedade e disse que estava interrompendo a sua viagem no Chile e indo para Santa Maria. “Tivemos uma conversa emotiva”.

Críticas à polícia

No começo do seu depoimento, ao fazer um relato geral ao magistrado, Schirmer fez duras críticas ao trabalho realizado pela Polícia Civil, responsável pelo inquérito policial que apurou as causas e responsabilizações iniciais do incêndio, que considerou ter sido realizado de forma “medíocre e espetaculosa”.

“Eu disse, à época, que o inquérito era uma ‘aberração jurídica’ e eu vou explicar porquê”. Schirmer apontou indiciamentos que considerou incoerentes. Disse que era “notável e notória a má vontade da polícia”. Informações falsas eram passadas à imprensa, “de forma subterrânea”. “O inquérito foi feito pela imprensa, não era um inquérito sério”. Ainda, que “faltou coragem, isenção, responsabilidade aos responsáveis”.

Fonte: Radio Progresso de Ijuí e TJ/RS